O debate sobre a regulação da Inteligência Artificial no Brasil está a todo vapor. Quase sempre, a discussão se resume a escolher um “modelo” pronto para seguir: O americano, o europeu ou o chinês. Mas e se essa premissa estiver completamente equivocada? Em uma entrevista reveladora, o professor Carlos Portugal Gouvêa, da Faculdade de Direito da USP, desafia essas noções comuns. Suas ideias mostram que, enquanto o Brasil discute qual receita de bolo copiar, estamos ignorando os ingredientes mais caros e essenciais.
A desconstrução dos “três modelos” regulatórios
Um dos primeiros mitos que o professor Portugal desmonta é a ideia amplamente difundida de que o mundo estaria organizado em três modelos regulatórios rígidos:
(1) o “livre mercado” dos EUA;
(2) a Europa “baseada em direitos”;
(3) e a China “estatal e autoritária”.
Segundo ele, essa visão é uma caricatura que não corresponde à realidade.
Estados Unidos – O falso mito do livre mercado: A internet nasceu como um projeto militar, e desde então os EUA sempre mantiveram uma forte regulação, distribuída entre diversas agências altamente financiadas. O recente decreto presidencial sobre IA não cria um regime novo, mas coordena órgãos que já trabalham com acesso amplo a dados, fiscalização intensa e capacidade tecnológica sem paralelo. Ou seja: o modelo americano é regulado de forma profunda, só que de modo técnico, descentralizado e com alto poder material.
Europa – Direitos, sim, mas com estratégia econômica por trás: O professor destacou que o modelo europeu é mais econômico do que moral. A Europa não possui as grandes plataformas que dominam o mercado global, e por isso busca fortalecê-las pela via regulatória. Leis como o Digital Markets Act e o Digital Services Act têm como objetivo criar um ambiente em que startups europeias possam competir, inclusive obrigando big techs a compartilhar dados com empresas locais. Os direitos fundamentais são, nas palavras dele, a “cereja”, não o bolo.
China – Menos estatal do que aparenta: A China também não é o extremo oposto. Suas gigantes tecnológicas são majoritariamente empresas privadas, listadas em bolsas internacionais. O Estado tem influência, claro, mas opera muitas vezes por incentivos de mercado, especialmente para impulsionar tecnologias que fortaleçam o país no cenário global.
A conclusão é que os modelos são híbridos, dinâmicos e estratégicos. A divisão tripartite é sedutora, mas enganosa e perigosa para países que tentam imitá-los sem compreender sua complexidade.
O Brasil e a armadilha da “cereja sem o bolo”
Ao tratar da regulação brasileira, o Professor foi contundente: Estamos repetindo um erro histórico.
Assim como ocorreu com a legislação de proteção de dados, o Brasil tende a copiar superficialmente o modelo europeu, ignorando o aparato institucional, científico, tecnológico e orçamentário que o sustenta.
A expressão usada na entrevista, e que marcou a conversa, foi a estratégia da “cereja no bolo”:
- A cereja: Princípios bonitos, textos sofisticados, regras de direitos fundamentais.
- O bolo: Bilhões em investimento, agências robustas, engenheiros e pesquisadores altamente capacitados, supercomputadores, universidades integradas ao mercado.
Hoje, o país não tem o bolo. E copiar apenas a cereja cria uma lei elegante, mas impossível de aplicar.
Além disso, segundo o professor, o Brasil é dominado por uma lógica regulatória consumerista e rentista, que ignora a dimensão geopolítica da IA: Poder militar, domínio de fluxos informacionais, infraestrutura crítica e competitividade internacional.
Da assimetria informacional à assimetria cognitiva
Uma das contribuições conceituais mais relevantes da entrevista foi a distinção entre o problema regulatório clássico da assimetria de informação e o problema contemporâneo da assimetria cognitiva.
Hoje, não falta informação. Falta capacidade de processá-la.
Os países que possuem universidades integradas à indústria, centros de pesquisa, financiamento contínuo e políticas de inovação tendem a ampliar sua vantagem, enquanto países que não fazem esse investimento ficam cada vez mais distantes. A IA age como um multiplicador de conhecimento, e isso aprofunda desigualdades globais que já eram grandes.
Essa assimetria tem implicações diretas em:
- Competitividade econômica;
- Autonomia tecnológica;
- Defesa e segurança nacional.
Para o professor, essa é uma das questões centrais da regulação de IA e está quase ausente do debate brasileiro.
Como regular tecnologias que mudam “a cada segundo”?
Outro ponto fundamental discutido no episódio foi a dificuldade de regular tecnologias altamente dinâmicas.
O Brasil enfrenta dois entraves estruturais:
- Desconfiança nas instituições, fruto de uma relação histórica disfuncional entre Estado e mercado.
- Falta de articulação entre governo, universidades e indústria, o oposto do modelo de “tríplice hélice” que fomenta inovação.
Neste contexto, a ideia de “regras claras” e “segurança jurídica” perde força. O fundamental é ter um regulador competente, legítimo e confiável. Um regulador capaz de suspender um projeto, exigir dados, ou tomar decisões difíceis com base técnica e não por pressões políticas, moralismos ou intuições.
A crítica ao ativismo judicial e o imperativo da deferência científica
A conversa abordou também um ponto sensível: A atuação do Poder Judiciário em temas tecnocientíficos.
O exemplo citado foi o caso da “pílula do câncer”, em que decisões judiciais forçaram a USP a produzir uma substância sem qualquer comprovação científica. Segundo o professor, trata-se de um caso emblemático de intervenção “grotesca” e perigosa.
A partir disso, ele defende:
- O Direito deve estabelecer balizas éticas, não definir verdades científicas;
- O Judiciário deve praticar deferência técnica, reconhecendo os limites de sua expertise;
- É urgente reformar o ensino jurídico, aproximando-o da ciência e abandonando visões dogmáticas e hierarquizadas.
Regulação de IA exige humildade institucional e confiança na ciência.
O que o Brasil precisa fazer de verdade
Ao final da entrevista, o Professor Carlos foi direto: O problema central é político e orçamentário.
Sem orçamento, não há regulação eficaz.
- Congresso e Executivo precisam liderar: Criar instituições técnicas, financiar pesquisa e garantir carreiras que atraiam especialistas de nível global.
- Capacitar as agências reguladoras: IA afetará tudo, de bancos a planos de saúde. As agências precisam desenvolver capacidades internas de análise, modelagem e monitoramento (a “contrainteligência artificial do regulador”).
- Inspirar-se nos casos brasileiros de sucesso: A Embrapa e a Embraer mostram que o país pode gerar inovação de ponta quando há investimento pesado, estabilidade institucional e integração entre pesquisa e mercado.
- Desenvolver uma estratégia própria, não uma cópia: O Brasil não pode se limitar a importar modelos estrangeiros sem o contexto necessário. É preciso um plano nacional de IA que combine soberania tecnológica, desenvolvimento econômico e proteção ética.
A entrevista com o professor Portugal iluminou um ponto essencial: o Brasil discute regulação de IA como se estivesse escolhendo entre modelos prontos, quando deveria discutir a construção de sua própria capacidade científica, institucional e econômica.
O desafio não é escrever uma boa lei. É formar pessoas, financiar pesquisa e criar instituições capazes de compreender e acompanhar tecnologias que evoluem em velocidade exponencial.
Sem isso, ficamos só com a cereja.
E, como lembrou o professor, a cereja sem o bolo não alimenta ninguém.
O episódio completo com o professor Portugal está disponível no YouTube e no Spotify. É só clicar na foto do convidado, no início do post para ser redirecionado. Para acompanhar as próximas entrevistas e publicações, siga nossos grupos nas redes sociais e nos acompanhe aqui no blog!
Até breve! 🤖