No meio da euforia e da confusão que cercam a inteligência artificial, ferramentas como o ChatGPT trouxeram o debate para a mesa do jantar. De repente, todos têm uma opinião sobre o futuro do trabalho, a natureza da criatividade e os perigos de máquinas superinteligentes. O ruído é ensurdecedor, misturando promessas utópicas com medos distópicos.
Em meio a tanto “excesso de propaganda”, vozes de autoridade e realismo são mais necessárias do que nunca. Uma dessas vozes é a do Professor Fabio Cozman, diretor do Center for Artificial Intelligence (C4AI) da USP e professor titular da Escola Politécnica. No dia 08 de novembro de 2024, o AIAgora teve o privilégio de conversar com o professor desde os fundamentos teóricos da Inteligência Artificial (IA) até desafios futuros, impactos sociais e o posicionamento estratégico do Brasil no cenário global, acompanhe:
Sobre o entrevistado
Fabio é um dos nomes mais influentes da pesquisa em IA no país. Engenheiro formado e mestre pela Poli-USP, doutor pela Carnegie Mellon University, um dos berços da IA mundial, ele coordena duas iniciativas estratégicas:
- C4AI (Center for Artificial Intelligence): parceria USP–FAPESP–IBM voltada à pesquisa de ponta.
- C.IAAM: centro nomeado pela reitoria para articular grupos de pesquisa em IA na universidade e apoiar políticas institucionais.
Ao comparar sua experiência na CMU com a USP, Cozman destaca diferenças estruturais: a CMU é uma instituição menor e altamente focada, com acesso a grandes financiamentos de longo prazo (projetos NASA, DARPA), ao passo que a USP é abrangente, diversa e opera em outra escala de financiamento.
Como definir a Inteligência Artificial?
Um dos primeiros temas da entrevista foi o próprio conceito de IA, hoje usado de forma tão ampla que frequentemente se confunde com “computação”.
Definição informal: Construir dispositivos computacionais com algum grau de inteligência.
Definição formal (apoiada pela UNESCO): São sistemas capazes de representar conhecimento, raciocinar, tomar decisões autonomamente e aprender com a experiência.
Com a popularização da tecnologia, Cozman alerta para um risco crescente: que regulações mal formuladas acabem tentando “regular a computação como um todo”, e não apenas sistemas de IA de fato.
O momento atual: Euforia, desafios e o futuro da tecnologia
Fabio descreve a trajetória da IA como marcada por picos de entusiasmo e períodos de frustração. O presente é um momento de “extrema euforia”, impulsionado por modelos generativos como o ChatGPT, embora os avanços que sustentam essas ferramentas venham se consolidando há pelo menos 15 anos.
Para o futuro próximo, ele destaca três desafios centrais:
- Confiabilidade das respostas: A IA terá de operar com mais robustez, principalmente em aplicações críticas.
- Redução do custo energético: Treinar modelos gigantescos exige energia e recursos computacionais em escala que poucos países dominam.
- Infraestrutura acessível e sustentável: Tornar a tecnologia mais barata e eficiente será determinante para sua adoção global.
As “alucinações” dos modelos generativos
Fabio foi categórico ao afirmar que:
“Do jeito que eles são hoje, as alucinações são intrínsecas.”
Por serem modelos estatísticos, eles predizem a próxima palavra mais provável e não necessariamente a mais correta. A solução não deve vir apenas de aperfeiçoamentos incrementais, mas da integração com outras áreas, como:
- RAG (Retrieval-Augmented Generation): Consulta a bases de conhecimento verificáveis.
- Raciocínio lógico e algoritmos tradicionais: Modelos generativos serão interfaces, mas decisões críticas devem se basear em mecanismos formais e confiáveis.
IA e o mercado de trabalho: Complemento, não substituição
Para Fabio, a IA não eliminará empregos, mas transformará as tarefas desempenhadas. As tecnologias tendem a aumentar a produtividade, automatizando atividades repetitivas e permitindo que profissionais se concentrem em tarefas mais cognitivas e humanas.
Alguns exemplos discutidos:
- Advogados: Uso de IA para localizar documentos entre milhares de páginas.
- Programadores: Aumento da velocidade e qualidade da produção de código.
- Escrita e comunicação: Apoio na redação, especialmente em língua estrangeira.
Ele destaca que profissões que envolvem empatia, negociação, cuidado e interação humana tendem a se fortalecer.
No entanto, a adaptação será necessária. Proibir a tecnologia, segundo ele, seria um erro estratégico:
“A gente vai ter que retreinar um monte de gente.”
Aplicações em educação: Um terreno fértil, mas ainda experimental
A ideia de um tutor automático para cada estudante existe há décadas, mas ainda está em desenvolvimento. Cozman ressalta que estamos numa fase de prospecção, em que experimentamos o que realmente funciona.
Aplicações promissoras já em uso:
- Auxílio à escrita e revisão de textos;
- Sistemas automáticos de resposta em cursos massivos (como o curso da USP com 35 mil inscritos);
- Correção automatizada de provas, com explicações detalhadas sobre erros.
Ainda assim, o objetivo final permanece: “fazer com que o aluno aprenda mais”, e isso exige estudos comparativos rigorosos com métodos pedagógicos tradicionais.
O Brasil no cenário global: Potencial, limitações e caminhos estratégicos
A partir da análise de diversos indicadores (produção acadêmica, talento, indústria, impacto global e infraestrutura), Cozman traça um diagnóstico claro:
Pontos fortes:
- Comunidade acadêmica consolidada;
- Boa colocação em rankings de talento;
- Forte interesse e investimento do setor privado.
Pontos fracos:
- Pouco impacto global;
- Infraestrutura insuficiente para treinar modelos de grande escala;
- Competição desigual com EUA e China.
Segundo ele, o Brasil está “no banco de trás” do desenvolvimento de IA em escala global.
A melhor estratégia para o país: Nichos de excelência
Em vez de tentar competir diretamente com potências bilionárias, o Brasil deve investir com inteligência em áreas onde possui vantagens estruturais:
- Língua portuguesa e línguas indígenas: Terreno fértil para pesquisa inédita.
- Dados públicos únicos no mundo, como SUS e Cadastro Único.
- Problemas específicos do contexto nacional, como previsão de ressacas, área em que a USP já desenvolveu uma das melhores ferramentas do mundo.
E o modelo de linguagem soberano? Cozman vê a ideia como importante, porém extremamente complexa. O país deve ponderar rigorosamente soberania e independência tecnológica versus altíssimo custo e risco de baixa adoção se o modelo não competir em qualidade
A decisão, segundo ele, deve ser fruto de debate público qualificado, envolvendo academia, indústria e governo.
Dicas para quem quer estudar IA, segundo o entrevistado
- Para o público geral: Curso “A Inteligência Artificial – USP 90 anos”, com 35 mil inscritos e mais de 150 mil visualizações.
- Para estudo aprofundado: “Inteligência Artificial”, de Stuart Russell e Peter Norvig, o principal livro-texto da área.
IA como tecnologia para aumentar a produtividade humana
Encerrando a entrevista, o entrevistado destaca a importância de um debate público responsável, livre de ficções apocalípticas ou entusiasmos ingênuos.
“Fundamentalmente, é uma tecnologia criada para melhorar a produtividade humana.”
O Brasil tem muito a ganhar, desde que construa uma regulação equilibrada, fortaleça sua infraestrutura e foque em áreas nas quais já possui vantagem comparativa.
O episódio completo com Fabio Cozman está disponível no YouTube e no Spotify. É só clicar na foto do convidado, no início do post para ser redirecionado. Para acompanhar as próximas entrevistas e publicações, siga nossos grupos nas redes sociais e nos acompanhe aqui no blog!
Até breve! 🤖